O uso da arte da palhaçaria para falar sobre o universo feminino

O uso da arte da palhaçaria para falar sobre o universo feminino

Por Martha Paiva. Palhaça, atriz, diretora, produtora, contadora de histórias e fundadora da Cia do Solo

A linguagem da palhaçaria nos oferece sempre um novo ponto de vista para as situações cotidianas e os dilemas humanos, transgredindo sem pudor as normas estabelecidas.Já o universo feminino, vasto e diverso, historicamente é silenciado, abusado, reprimido. Quando essas duas linguagens se encontram, um terreno muito fértil para criação nasce e a liberdade para explorar temas diversos sobre a ótica transformadora da palhaça se torna dramaturgia cômica.

Valorizar os artistas de rua, principalmente as mulheres artistas e a importância do riso como prática artística é um espaço de troca e de reflexão necessário, uma forma de deixar registrado um assunto que precisa ganhar cada vez mais espaço. Tanto o tema da presença da arte na rua quanto à comédia feita por mulheres são assuntos pertinentes a ‘todes’ nós que somos afetados pela produção artística nacional.

Realizo desde 2014 o espetáculo solo Charme que aborda questões relacionadas ao universo feminino sob a ótica de uma palhaça dona de um salão de beleza. Através da comédia física revelo aspectos da mulher contemporânea questionando com humor sobre o que está instituído e que precisa de urgente revisão. Idealizado originalmente para o espaço público, o espetáculo demonstra sua singularidade, já que se trata de um espaço ainda predominantemente ocupado por homens.

Nesses oito anos, as reflexões de gênero cresceram e são pautas urgentes na nossa sociedade. Passamos a entender melhor algumas engrenagens de um sistema perverso que entre outras coisas alimenta a discórdia entre mulheres. Passamos a falar e rever como estamos nos valorizando, sobre independência emocional, sobre amor romântico, abusivo, sobre liberdade, sobre violência e entendemos que o feminino é plural, e é preciso falar dessa pluralidade, das diferenças que afetam a segurança e a vida das mulheres.

Celebrar oito anos deste espetáculo solo de palhaça, idealizado, produzido e realizado por uma mulher nas ruas não pode ser apenas uma comemoração individual. É necessário reconhecer privilégios que possibilitaram esta realidade e potencializar a ocupação do espaço público por outras mulheres. Isto é, incluir a diversidade de mulheres, já que para muitos corpos ‘feminines’ pensar em trabalhar nas ruas, seja com sua arte ou qualquer outro trabalho se torna perigoso, hostil e até mesmo impensável.

Esta observação se encontra com dados ainda mais chocantes no que tange a comunidade LGBTQIA+, confirmando-se através da pesquisa da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil), que revela a alarmante realidade da violência contra corpos trans no país tornando-se líder nesse pódio repugnante por mais de uma década.

Nós da Cia do Solo convidamos cinco artistas independentes e/ou grupos de mulheres onde a maioria já atuou nas ruas com seu trabalho artístico para participar do Podcast Charme e loucura: crômicas em cena e contar como o humor pode ser usado como ferramenta de trabalho e apresentar histórias de vidas que revelam muita coragem e resistência para serem quem são: artistas, cômicas, rueiras, arteiras com orgulho e excelência.

A arte de rua e os artistas populares são sazonalmente valorizados, mas de forma geral ainda estamos longe da valorização. Estamos mais próximos da fase de reconhecimento. Com uma educação mais valorizada e o intercâmbio de arte e escola cada vez mais fluído um dia alcançaremos a verdadeira valorização dos nossos artistas populares.

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